sábado, 12 de setembro de 2009

Os Corsários de Macau - A lenda dos galeões infernais (Parte V)

O vento assobiava com vontade em meio ao convés da Mercúrio, dando um aspecto ainda mais assustador à escuridão noturna. Não havia lua e o céu nublado encobria boa parte das estrelas. Apenas a chama da tocha dos vigias oferecia alguma resistência às trevas que os cercavam. Eram três homens no total, um deles era o segundo em comando, Pedro Gouveia, e os outros dois eram artilheiros experientes. A conversa girava em torno das monstruosidades que os oceanos guardavam e das experiências sobrenaturais de cada um longe da terra firme. Situação que não poderia ser diferente, já que os temores da última viagem ainda estavam bastante frescos nas mentes de cada tripulante.

-O que não entendo é porque Deus permite que estes demônios vaguem pelas águas. - disse José, inconformado, enquanto coçava sua vasta barba grisalha.

-Porque... - começou Vasco, o outro artilheiro - Porque somos todos pecadores, não ouvimos Suas palavras e, quando ouvimos, não fazemos o que elas mandam. Somos todos pecadores e merecemos Sua ira.

Gouveia apoiou-se na beirada da nau para tentar observar a terra firme, porém só conseguiu ver uma escuridão interminável com alguns poucos pontos de luz amarelada espalhados aqui e ali.

-Ainda mais nestas terras de infiéis. - retrucou Gouveia - Esta terra que não aceita as palavras de Cristo, com certeza é a mais pavorosa de todas. Imaginem o que não deve ter de monstros em meio a esta escuridão pagã... Creio que os galeões negros são o de menos por aqui.

Todos assentiram pesarosamente, enfiando a cabeça entre os ombros e tentando absorver o que acabara de ser dito. Haveria mesmo uma criatura infernal a espreita em canto obscuro do Oriente?

-Eu queria que Pero estivesse aqui... - murmurou José, tão baixo que foi quase que ininteligível aos outros.

E de certa forma era o desejo de todos. A presença de um homem de Deus entre eles certamente acalmaria os ânimos dos três vigias noturnos, que agora rezavam para que o tempo passase logo e seus turnos chegassem ao fim.

O silêncio era praticamente absoluto, exceto pelo som das ondas se chocando contra o casco de madeira da nau. Até o vento se calara frente ao tão sombrio clima que se abatera entre os homens. Pedro Gouveia ainda permanecia com os olhos voltados à terra, e agora já distinguia a silhueta de Amacao. Tentara imaginar-se em terra firme, dentro de uma casa de pedra bem protegida, com uma linda mulher aquecendo a cama ao seu lado. Suspirou. Nunca pensou que tal coisa passaria por sua cabeça. Nunca gostara de estabilidade, sua vida era dinâmica, extremamente mutável, uma aventura sem fim pelos infindáveis mares do mundo. Mas agora uma inesperada fraqueza atingiu seu espírito, toda esta insegurança de sua vida atingiu-lhe como um tiro de canhão. Acho que estou ficando velho para isso, pensou.

Então algo cortou-lhe os pensamentos. Parecia vir do casco do outro lado da nau, e certamente não era as ondas do mar. Sinalizou aos outros para que ficassem em silêncio absoluto e, após pegar seu arcabuz, caminhou com cautela até a outra borda da embarcação. Os outros dois seguiram-no alguns passos atrás, carregando a tocha para iluminar o caminho. O som repetiu-se e agora tudo ficou claro. Havia algo subindo pelo casco! Pedro freou o movimento a apenas dez passos da borda e apontou o arcabuz para a frente, esperando o que quer que fosse subir para então eliminá-lo.

-Rápido, acordem os outros. Estamos sob ataque! - sussurrou Gouveia aos artilheiros, enquanto o coração disparava no peito.

Assim que os outros dois vigias partiram, a escuridão tomou conta e, com os olhos desacostumados, Pedro Gouveia sentiu o medo dominando-o por completo. Teria que se guiar apenas pelos ouvidos agora, pelo menos até que seus olhos conseguissem distinguir silhuetas na noite. Uma gota de suór escorreu de sua testa até o pescoço, um silêncio agoniante se abatera em volta, dando margem para a imaginação do segundo em comando florescer como a de uma criança. Passou a imaginar uma invasão de criaturas monstruosas e uma delas estava ao seu lado, apenas esperando o momento certo de cortar-lhe a garganta. Prendeu a respiração. Moveu o arcabuz de um lado ao outro e aliviou-se a constatar que não havia algo ao seu lado. Apertou com força a cruz em seu bolso e rezou a Deus para guiar sua arma em tal momento de crise. Então algo tocou o convés de leve, e antes que isso ficasse registrado em sua mente, o dedo já puxava o gatilho.

O estrondo violento do disparo cortou o silêncio da noite, e o clarão da explosão revelou uma figura humana toda mbrulhada em panos negros tombando do convés em direção ao gelado mar do sul da China. Mal deu para Pedro Gouveia piscar os olhos e uma dúzia de novos invasores já se espalhavam pelo convés da Mercúrio. Em um rápido movimento, o português lançou o arcabuz ao chão e desembainhou sua espada, a tempo de evitar uma primeira investida inimiga. O choque entre as duas lâminas foi forte, forçando um passo atrás do defensor solitário, que mal teve tempo de se reabilitar e já viu-se bloqueando mais três impiedosos golpes.

Os ataques não paravam de vir e, em meio às trevas, apenas o som das lâminas cortando o ar guiava a espada do português. Após uma seqüência de mais cinco golpes, Pedro Gouveia foi cercado pelos invasores. O suór já tomava-lhe o corpo inteiro e o desgaste provocado pelo intenso combate era claramente perceptível em sua respiração. Onde estariam os reforços? Será que José e vasco haviam sido pegos no meio do caminho? O imediato xingou baixinho. Precisava alertar os outros sobre o ataque, caso contrário a Mercúrio seria tomada e pilhada. Pensou logo em João. O homem perderia o investimento de uma vida inteira. Apertou com força o punho da espada e trincou os dentes. Só havia uma coisa a se fazer...

-Estamos sob ataque!!!!! - berrou com tamanha força que sentiu os pulmões e a garganta queimando.

E em meio a um turbilhão de lâminas, sangue e gritos, Pedro Gouveia pereceu brutalmente. Porém sua valentia não foi em vão. Uma turba de marinheiros portugueses brotou como um enxame no combate. E, em uma fúria incontrolável, lutaram como demônios por seus companheiros perdidos.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Os Corsários de Macau - A lenda dos galeões infernais (Parte IV)

A rústica sala de jantar parecia um tanto ao quanto vazia agora que a garota retirara-se para a cozinha. A longa mesa de madeira polida ainda apresentava traços da refeição. E que refeição! João passou a mão sobre o estômago avantajado, em um ato inconsciente de aprovação. Não comia algo tão saboroso há o que? Séculos? Recostou-se um pouco mais curvo na cadeira, tentando acomodar melhor o peso do bacalhau. Pensou nos homens que mandara ficar em terra, provavelmente estavam completamente bêbados e cercados por mulheres. Fez uma careta. Porque diabos decidira ficar na casa do velho mercador? Sentia falta de farrear com seus marinheiros. Não houvera festa na última viagem, recordou-se amargamente. Suspirou. De um modo ou de outro o final de uma refeição sempre parecia trazer a melancolia. Talvez porque fosse um dos únicos momentos em que as pessoas relaxassem, esquecendo as tarefas diárias e perdendo-se em labirintos intermináveis de lembranças. E lembranças sempre trazem a tristeza. Sempre.

Quando Amélia retornou à sala de jantar, encontrou o jovem capitão com os olhos pregados no teto. Havia tanto sofrimento naquele olhar. Ela se perguntou o quanto o mar podia ser terrível com os homens. E o quanto podia ser libertador também. Sentira um fascínio imenso pelas incontáveis histórias de João, pelos infinitos lugares que conhecera, pelas diferentes pessoas que cruzaram seu caminho. Sorriu ao pensar em Portugal. No entanto, sua única lembrança da terra natal era o forte cheiro de peixe do porto de Lisboa. Sentiu uma pontada de inveja do homem ali sentado. Sua vida era uma aventura, não havia horizonte, não havia limitações... Haveria algo de melhor que isso? Mas João parecia tão abatido. Deu alguns passos a frente, mal controlando a curiosidade que a dominava por dentro.

-A comida estava ótima... - disse João, sem desviar o olhar para a garota.

-Obrigada.

Ela permaneceu parada, observando-o. A tristeza lhe dava um charme absurdo. Os olhos de Amélia não desgrudavam do rosto do capitão. A garota não entendia bem o que era, João parecia mais maduro quando não apresentava o seu característico bom humor. Passava de um moleque brincalhão e bastante superficial, para um homem misterioso, com um ar de sabedoria que a atraía tremendamente.

-O que você quer?

Não havia delicadeza na pergunta de João, muito menos cavalheirismo. Por alguns segundos, Amélia permaneceu parada, completamente chocada. Não estava acostumada com isso. Passara uma vida inteira sendo paparicada por rapazes de todos os tipos que passavam por Amacao, inclusive por orientais dos mais estranhos. Qual era a do capitão? Parecera interessado por ela no começo, fazendo brincadeiras e insinuações. Elogiava-a de tempos e tempos. E agora isso? Havia algo ali. Algo terrível o pressionando por dentro, algum tipo de fardo ou perda. Então os olhos negros do capitão fitaram-na. A melancolia tocou seu coração como uma mão gélida. Amélia prendeu a respiração enquanto esboçava uma respota, mas nada saiu. Não conseguia organizar os pensamentos com aquele olhar penetrante.

-Não a culpo por sua curiosidade, garota. Não mesmo. Mas há certas histórias que as mulheres devem ser poupadas de ouvir.

Faça alguma coisa, faça alguma coisa, faça alguma coisa... Sua mente estava descontrolada. Galeões negros, Camões, piratas, desmembramentos, crueldade. Maus presságios. Porque essas coisas não saíam de sua cabeça? Fechou o punho com força. Sentia-se irritado, abatido e profundamente cansado. Só queria largar-se no braços da mulher e chorar, chorar como um garotinho. Não aguentava mais aquela interminável sensação de estar sendo perseguido, vigiado. Achara que passaria quando chegasse em terra, ledo engano. Havia algo de demoníaco naqueles corsários filhos da mãe. Soltou o ar vagarosamente. Apenas seu orgulho masculino o impedia de desabar.

-Sei que foram perseguidos por piratas, é isso que o incomoda? - tentou Amélia, deixando um leve rubor transparecer ao ver a careta de desgosto do capitão.

-As pessoas aqui são simplesmente incapazes de manter a boca fechada, não é?

Amélia orgulhava-se por sua paciência e por sempre tratar bem os outros. Mas a insolência de João a feriu como uma faca. Como ousava tratá-la como uma vagabunda qualquer? Ainda mais em sua casa. O rubor espalhou-se das bochechas para o pescoço, mas não havia vergonha ali, apenas fúria, pura e simples fúria. Os olhos dela queimavam como as labaredas das profundezas do inferno. No entanto, João permaneceu impassível, encarando a garota demoradamente. Ela imaginou se haveria desafio nos modos do capitão, porém não conseguiu identificá-lo.

-Como ousa tratar-me desta maneira em minha própria casa?

-Pare de se meter onde não é chamada então, garota. Você não sabe o que é estar sozinho durante semanas... Com a vida de dezenas de homens em suas mãos... Com... - João pigarreou com força, enquanto buscava clarear a mente - Você não sabe o que é o inferno.

As últimas palavras foram cuspidas da boca do capitão quase como se fossem xingamentos. Ele nunca fora de se abrir para amigos, muito menos para estranhos. As perguntas de Amélia deixavam-no desconfortável e mau humorado, tudo que passava em sua cabeça era grosseria. Não queria isso, não mesmo. Mas parecia haver pelo menos dois Joãos e um não conseguia influenciar o outro de jeito nenhum. O primeiro era divertido, amigável e adorara a graciosa jovem à sua frente. Porém o segundo... O segundo queria esganá-la por sua intromissão, por sua curiosidade estúpida.

A entrada súbita do Sr. Alcântara na sala impossibilitou qualquer reação de Amélia. O homem estava inquieto e um pouco ofegante, havia espanto em seus olhos.

-Capitão, capitão! Venha cá! Venha rápido à minha sala de leituras!

João levantou num pulo. O que era agora? O peixe da filha já estava acomodado em seu estômago. Será que o velho tinha outra surpresa agradável por trás de toda a afobação?

-Com sua licença, senhorita. - disse o segundo João, com puro escárnio no tom de voz.

E os dois homens sumiram por trás da porta de madeira da sala de leituras. Deixando Amélia sozinha. Sozinha para nutrir sua irritação por João. E sozinha para amadurecer sua paixão por João. Xingou baixinho. O que estava acontecendo? Porque o mais idiota dos homens que já conhecera não saía de seus pensamentos? Acolheu-se em uma cadeira na sala de jantar. A imagem do sorriso do capitão parecia assombrar sua cabeça. Eu te odeio. Eu te odeio. Eu te odeio!

E neste exato momento um poderoso som cortou-lhe os pensamentos, como um ribombar de um trovão do Juízo Final. O terror chegara a Amacao.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Os Corsários de Macau - A lenda dos galeões infernais (Parte III)

Quando saiu da taverna, seus pensamentos enferveciam em sua cabeça. Explodiam em seus nervos, mais de mil a cada batimento cardíaco. Tantas perguntas, tantas dúvidas, tantos temores. O tal de Camões era realmente brilhante, como podia saber tanto de uma região tão isolada? Falara como um mestre a um pequeno aprendiz - e isso irritou João de certa forma -, porém cada palavra era tão sedutora que chegou um momento em que o capitão não mais importou para a estranha arrogância do poeta. Quanto conhecimento ele detinha sobre os amarelos! O imperador deles era fraco e incapaz de lidar com a ameaça dos piratas, se encolhia no interior do país, mantendo leis estúpidas que reduziam seu poderio naval, enquanto os criminosos assolavam a costa. João sorriu frente a decadência de um rival, o comércio estava ali, só esperando que Portugal o dominasse. A possibilidade de lucro fácil iluminou a face do jovem mercador.

Chang Tse-Lac. O nome cortou seus pensamentos gloriosos, tornando suas feições amargas. O homem era o dono do Mar do Sul da China e, ao que parece, não gostava muito de competição pelas riquezas da região. Camões relatara a banalidade de se encontrar corpos impalados, desmembrados e enforcados ao longo do litoral. O pirata não aceitava a presença de outros navios que não fizessem parte de sua frota maldita. João sentiu um friozinho tocando-lhe a espinha. Além de tudo, ainda havia o transe aterrador que dominara o poeta por um curto, porém memorável, espaço de tempo. O que significou aquilo? algum tipo de aviso? João não podia dizer e nem mesmo Camões, já que o homem se comportara como se nada houvesse acontecido.

Algo na cabeça do capitão não parava de martelar. É uma aviso, algo de terrível vai acontecer, faça alguma coisa... João apertou o crânio violentamente, como se tentasse expulsar os pensamentos à força. Então paralizou-se. A imagem das Musas retornou à sua mente. Será que elas inspiram homens comuns também? Ou ele seria um poeta? Riu alto da idéia súbita. Porém a figura de um ser supremo lhe contando sobre o tecer do destino ainda o incomodava. Pensou no que Pero diria sobre isto. O jesuíta provavelmente daria umas boas gargalhadas, então ralharia sobre as crendices pagãs que os marinheiros insistiam em perpetuar, terminando o discurso com algum jargão cheio de positividade. O otimismo de Pero tocava João, porém parecia pouco efetivo ultimamente e o capitão não conseguia compreender porque ele ainda o mantinha.

Não completara o décimo passo para longe do "Sereias de A-Má", quando a larga e afobada figura do Sr. Alcântara dobrou uma esquina próxima, sentindo-se claramente aliviado ao ver o capitão da Mercúrio.

-João! Graças a Deus te encontrei! - exclamou o velho, cumprimentando o homem com a mão gelada e cheia de suór.

-O que foi, Sr. Alcântara? Algo de errado?

João sentiu o coração acelerar ao lembrar das sombrias palavras de Camões. Segurou o punho da espada com força.

Ao perceber a reação do capitão, o velho mercador tratou logo de remediar a situação:

-Por Deus, não! - um leve rubor tocou sua face - desculpe meus modos, certamente não quis preocupá-lo. Mas é que minha preciosa filha preparou um delicioso jantar para você, e... E ele está esfriando.

A tensão do momento foi cortada por gargalhadas secas. Jõao riu até que lágrimas despontassem de seus olhos. O Sr. Alcântara logo o acompanhou, deixando de lado todo o temor que lhe abatera ao ver o jovem capitão empertigar-se como um selvagem guerreiro pronto para o combate.

-Por um momento achei que... - João suspirou fundo, achando melhor poupar o velho de histórias de piratas - Bem... Não importa mais. O que importa é que eu poderia comer um boi agora!

O velho enlaçou o braço em volta dos ombros de João amigavelmente, guiando-o pelo emaranhado de casebres de pedra até sua humilde residência.

-Que bom, pois minha filhinha faz o melhor bacalhau das redondezas!

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Os Corsários de Macau - A lenda dos galeões infernais (Parte II)

Não havia muito movimento no estabelecimento, já que a tripulação de João ainda trabalhava. Levando de lá para cá, incessantemente, quilos e mais quilos de suprimentos para a nau. O destino final era Nagasaki, e então a velha Mercúrio seguiria de volta para os distantes e congestionados portos de Portugal. Apesar de ter sido guiado muito mais pelo ímpeto aventureiro que corria em suas veias, do que pela ganância, João sabia que, se tudo corresse bem, voltaria com uma pequena fortuna para sua amada terra. Só que as malditas embarcações negras haviam tornado-se muito mais do que uma pedra em seu sapato, eram um tormento contínuo. Podiam muito bem estar à espreita do capitão a apenas alguns quilômetros de Amacao, esperando que ele zarpasse para então capturá-lo em uma emboscada. Havia sempre a opção de dar meia volta e fugir, esquecendo o Japão e todo o seu mistério. Mas João jamais a consideraria, parte por causa do orgulho, parte por causa das histórias fantásticas que ouvira daquela que seria, talvez, a terra mais distante e desconhecida de todo o mundo.

Fazia pouco mais de uma década que o primeiro português pisara em terras japonesas, e João se perguntava o quão excitante deve ter sido. Conhecer um povo de olhos puxados completamente estranho, com panos coloridos cobrindo seus corpos e exóticas construções em meio a uma exuberante mata. Pensou se suas mulheres eram bonitas e bem educadas, e não criaturas estúpidas e terrivelmente acabadas como as de Goa. Uma terra com mulheres lindas fazia toda a diferença, pensou João, sorrindo como um menininho. Imaginou as riquezas intermináveis do Japão, pelo menos assim que o lugar era descrito por seus compatriotas, cheio de mercadorias valiosas para se trocar, ou mesmo tomar. Alguns momentos de selvageria iluminaram a face do português. Ele nunca fora de roubar, mas de alguma a forma a idéia lhe dava prazer, afinal, havia maior aventura do que saquear e depois fugir abarrotado de produtos valiosos?

Afastou o pensamento da cabeça rapidamente, já que uma rápida conexão em sua mente trouxe de volta os galeões negros. Eles eram completamente livres e viviam de intermináveis aventuras nos mares, mas a troco de que? Os piratas eram todos amaldiçoados, todos pagãos. Além do que atravancavam uma das maiores paixões de João, o comércio. Suspirou, irritado por ter levado seus pensamentos longe demais. Seu pai lhe daria uma bela de uma surra se ouvisse de sua boca qualquer coisa relacionada a saques e pilhagem. Tomou um gole bem servido de vinho. Lembrou das palavras do velho, ele vivia dizendo antes de João viajar que, como português, o dever maior seria o de levar a civilização aos bárbaros do oriente. Seres que viviam sem as palavras do Senhor e sem leis, um português jamais devia se rebaixar ao nível deles, mas sim mostrar o caminho a ser seguido. Por um momento imaginou centenas de naus portuguesas desembarcando em cada porto obscuro do mundo, espalhando cada aspecto de sua cultura para homens primitivos, ensinando-os a luz da civilização européia. Será que este era o início de uma nova era? Uma época de desenvolvimento jamais conhecida pela humanidade, que guiada pelo ímpeto e coragem da cristandade, alcançaria glórias jamais imaginadas antes. Um jorro enorme de orgulho percorreu o capitão, enquanto tomava mais um gole de sua bebida.

-Psssst!

O chamado de um desconhecido cortou os pensamentos do capitão, que observou a figura demoradamente. O homem usava roupas simples, com uma capa negra cobrindo-lhe as costas e os ombros. Tinha um rosto endurecido, como o de um combatente, e o tapa olho do lado direito confirmava a hipótese e lhe dava um aspecto aterrador. O cabelo era curto e castanho, assim como a cheia e bem cuidada barba. João, cheio de suspeitas e reservas, perguntou ao taverneiro se o homem era confiável.

-Luís é nosso poeta - disse o velho, com sua voz trêmula e rouca. Ele era tão magro, tão magro, que parecia um esqueleto. Os olhos fundos, o rosto estreito e enrugado, as mãos praticamente não apresentavam carne e era agoniante ver como cada tendão e osso se moviam debaixo da pele - Passa a maior parte do tempo em uma gruta aqui por perto, escrevendo e escrevendo. Não tem muitos amigos, mas definitivamente não causa problemas.

Mesmo com as palavras do taverneiro, João sentiu-se tentado a ignorar o tal de Luís. Algo nele não o agradava, não sabia o que. E porque diabos o estaria chamando? Nunca vira aquele homem antes, não conseguia imaginar o que teria para tratar com ele. Tomou mais um pouco de vinho. Agora Luís demonstrou certa impaciência, chamando o capitão com a mão. Acabou decidindo que não havia nada demais em ir até lá, o que um poeta sozinho poderia fazer com um marinheiro experiente? No máximo contar-lhe sobre os perigos das sereias e dos monstros marítimos. Riu da idéia, seguindo sem pressa até a mesa do homem, que não demonstrou sentimento algum em suas feições duras.

-Você é o capitão da Mercúrio, não é? - perguntou Luís, estendendo a mão a João.

João estremeceu com a pergunta. Como ele sabia? Mal havia chegado em Amacao e alguém que nunca vira em sua vida já sabia quem ele era? As notícias corriam tão rápido assim? Forçou-se a não demonstrar o que pensava.

-Quem deseja saber?

-Luís Vaz de Camões.

A resposta fora seca e carregada de certa arrogância. Ou seria orgulho? João não conseguiu identificar. Porém o nome lhe soou familiar, já ouvira em algum lugar, tinha certeza, todavia sua memória lhe traía e nada de relevante pôde ser resgatado.

-Sim, sou o capitão da Mercúrio. João Magalhães da Costa. - ele falou com convicção e confiança, apertando a mão do poeta com força.

Luís convidou o capitão a sentar-se, o que João fez de bom grado. Não parava de pensar qual seria a razão do homem ter lhe chamado. Será que sabia da sinistra perseguição? Dos galeões fantasmas? Recostou-se na cadeira com certo desconforto. Havia algo no poeta que transparecia uma sabedoria tremenda, como se conhecesse cada canto isolado do planeta, cada pessoa que o habitava e cada pensamento que passava por suas cabeças.

Por intermináveis momentos, um silêncio desagradável se abateu entre os dois. O olho bom de Luís permanecia voltado ao desconhecido, como se observasse um lugar distante em busca de inspiração, ou talvez, conhecimento. João logo lembrou-se das histórias gregas que seu pai lhe contara quando criança, de umas criaturas mitológicas chamadas Musas. Dizia-se que elas sabiam de tudo, eram filhas da Memória, e que os poetas iam até elas pedir inspiração para seus cantos. Até o melhor deles, Homero. O capitão achou que talvez fosse isso que Camões fazia, enquanto o silêncio entre os dois perdurava por quase cinco minutos. Que figura enigmática, pensou João, olhando o homem com certo apreço após recordar-se das antigas histórias do falecido pai.

-Chang Tse-Lak... - a voz de Camõs saiu como um gemido sinistro e o olho bom tornou-se vítreo, como se o homem estivesse em um transe bizarro.

O capitão sentiu uma pontada de pavor atravessando suas vísceras. Olhou interrogativamente ao taverneiro, mas este parecia tão perplexo quanto ele. Em um estalo seco, novas palavras saíram do poeta, uma a uma, eriçando os pêlos de João a cada estalada.

-Galeões negros... Morte... Pilhagem... Caos...

E da mesma maneira que veio, o transe desapareceu. E Camões nem pareceu notá-lo enquanto enchia a sala de palavras maravilhosas e conhecimentos inenarráveis.

domingo, 9 de agosto de 2009

Exclusão da parte II da lenda dos galeões infernais

Bom, não sei se alguém chegou a ler a lenda dos galões infernais parte II, mas cheguei à conclusão de que ela deveria ser excluída. Não compartilhava do mesmo espírito das outras duas e achei a escrita muito abaixo da minha média, além de ter pouco valor para o seguimento da trama. Eu realmente quero colocar a personagem Amélia na história, mas não fui feliz na maneira que a coloquei, pois acabava por lhe dar um papel muito pouco significativo que não encaixava com sua personalidade forte. Espero repor esta parte logo, além de postar a próxima.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Os Corsários de Macau - A lenda dos galeões infernais (Parte I)

Era estranho finalmente colocar os pés em terra firme. Não sentir o balanço das ondas em alto mar deixou João desorientado por uns momentos. Quanto tempo havia desde que partira de Malacca! Estremeceu frente às lembranças da viagem. Só a imagem dos sinistros galeões negros sem bandeira já deixavam os pêlos de sua nuca em pé. Histórias e mais histórias correram como água por sua tripulação, dizia-se que aqueles navios eram lar de criaturas abissais. Elas vagavam os oceanos em busca de marinheiros para escravizar. Seriam mil anos de tortura e trabalho forçado. Pero, o jesuíta que os acompanhava, vivia ralhando com os homens, dizendo que só tolos para acreditar em tão infundadas superstições. Porém João sempre o via rezando o terço toda a noite, com puro terror em seus olhos. O fato é que os sombrios barcos apareciam e desapareciam ao bel prazer, sempre que o capitão pensava que despistara-os, no próximo dia já brotavam pontos negros no horizonte novamente.

Não foram poucas as manobras de fuga. Quantas noites ele não mandará apagar todas as luzes da nau? Deixando-a à deriva até o amanhecer. Na tarde seguinte lá estavam os perseguidores novamente. Tentara também algumas pequenas modificações da rota para pegar ventos fortes a favor. Recordava das velas insufladas puxando a embarcação com tamanho vigor que pareciam que iam romper a qualquer momento. Mas não adiantava, os galeões eram velozes como o diabo. João não entendia como monstros tão enormes conseguiam equiparar-se à Mercúrio. Sempre gabara-se da estonteante velocidade de sua nau, mas aqueles demônios obscuros do mar não apresentavam qualquer dificuldade em acompanhá-la numa corrida.

Olhou para o horizonte mais uma vez. Pegara este hábito depois de tão aterrorizantes provações. Um friozinho incômodo na barriga sempre o instigava a olhar e olhar de novo para o mar. Será que os perseguidores encontrariam-no em Amacao? Tocou o crucifixo pendurado no peito para afastar o azar. Pero, que estava ao seu lado, riu do temor do capitão. Mas João podia sentir o pavor exalando dos poros do jesuíta. Sorriu como uma criança que descobre o segredo mais íntimo de outrem.

Caminhou alguns vagarosos passos na escura areia da praia. A poucos metros havia uma rústica construção de pedra, de onde iam e viam vários de seus marinheiros. Eles carregavam pesados tonéis e caixotes de madeira até alguns botes estacionados na margem. De lá seguiam até Mercúrio. Um rechonchudo senhor de idade observava o movimento incansavelmente, anotando cada mercadoria que saía de seu estabelecimento. Ah, o bom e velho comércio! Bendita seja esta terra portuguesa em meio aos ímpios, pensou João. A comida estocada em Malacca fora devorada nas longas semanas de fuga. O capitão lançara ao mar, pessoalmente, três de seus melhores tripulantes acometidos pela fraqueza da inanição. Um deles era o melhor artilheiro que João já vira, acertava disparos que nem Deus imaginaria ser possível. Recordou do tiro certeiro que matara um capitão francês a o que? Uns oitocentos metros? Um quilômetro? Por aí. Gargalhou incontrolavelmente. Fernão era um canalha mortal com um quarto de colubrina.

Arfou pesadamente para recuperar o fôlego. Mais uma vez pegou os olhos voltados ao horizonte. Pensou que provavelmente teria pesadelos para sempre com os episódios das últimas semanas. Grunhiu de desprazer. Que tipo de criaturas vis habitariam os convés daqueles horripilantes galeões? Lembrou de todas suas vãs tentativas de identificá-los com a luneta. Não vira ninguém nas proas e ninguém nos mastros! Seriam embarcações fantasmas? João já ouvira tantos marinheiros experientes falando de seus encontros mórbidos com navios da morte. Joaquim Aleixo de Farias não dissera uma vez que abordara um destes navios? Um arrepio cortou toda a extensão de sua espinha. E havia uma série preocupante de pontos em comum entre as duas histórias. Joaquim não dissera também que fora seguido por velozes embarcações negras?

-Ainda pensando em nossos amigos malignos, João? - perguntou o jovem jesuíta, com um ar divertido.

-Não, não...

A resposta fora vaga e sem convicção. O capitão ainda não saíra de seus devaneios cada vez mais freqüentes, estaria ficando louco? Indagou Pero a si mesmo.

-Sei. Tire isso da cabeça, homem. Rezar algumas ave marias na igreja lhe será de grande ajuda. Vamos! - Pero tocou-lhe o ombro com leveza, convidando João a seguí-lo.

De inicío o capitão caminhou sem ânimo, como se os espíritos do mal dos galeões ainda o aprisionassem. As feições sombrias volta e meia encaravam o horizonte novamente, sempre retorcendo-se ao perceber que nada havia ali. Mas à medida que seus pés lhe guiavam para o meio de um aglomerado de casinhas de pedra, seu bom humor usual ressurgia de pouquinho em pouquinho. Como era bom ver compatriotas novamente! O pequeno entreposto comercial não se comparava a Lisboa, mas já lhe garantia um gostinho de seu tão distante e amado lar. As mulheres brancas e bem-vestidas com suas enormes saias e decotes voluptuosos, os homens de porte altivo discutindo negócios no bom e velho português, as residências - bem toscas comparadas com as de Portugal - mas muito mais charmosas do que os antiquados barracos das índias. Ainda havia aquela tão conhecida calma segurança, que só uma cruz no alto da casa do Senhor era capaz de proporcionar aos homens. Em meio às heresias pagãs do oriente, o perigo era constante e terrivelmente assustador.

Pero alegrou-se com o súbito jorro de vida que apoderou-se de seu companheiro. Mas havia pouco interesse do capitão em seguir até a igreja, seus olhos já desviavam-se constantemente para o "Sereias de A-Má". Irritou-se com o nome pagão do pequeno estabelecimento, porque marinheiros adoravam essas bobeiras míticas? Parou a caminhada a alguns passos da taberna, o que não era lá muito longe da paróquia também, afinal, o aglomerado de construções européias chamado de Amacao não passava de um minúsculo entreposto comercial entre Malacca e Nagasaki. João fitou-o interrogativamente. O missionário sorriu e deu de ombros, esboçando uma despedida. Antes que pudesse terminar o movimento, o marinheiro já se encontrava dentro do "Sereias". Longe de deixá-lo bravo, isto arrancou-lhe umas boas gargalhadas. O bom e velho João Magalhães da Costa estava de volta. E seguiu até a casa do Senhor claramente maravilhado.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Os Corsários de Macau - Prólogo

Zhang Lei estava claramente tenso. Não suportava a idéia de ter que lidar com os bárbaros brancos e narigudos. Eram completamente imprevisíveis, arrogantes e violentos. Mais perigosos que os mongóis, sem dúvida. O Imperador é um completo idiota, pensou, nem suas concubinas o toleram, chegaram ao ponto de tentarem arrancar-lhe a vida em um atentado. Um inesperado sorriso brotou na face dura do almirante. Que tipo de homem é tão patético ao fazer amor que até prostitutas o rejeitam? Provavelmente o mesmo tipo que trai seu povo com pactos por demais generosos com bárbaros. As feições de Zhang Lei tornaram-se sombrias novamente. Ele podia tolerar o abandono da Cidade Proibida e até as cruéis perseguições aos budistas, mas nunca a fraqueza frente à ameaça pirata e bárbara. Isto é uma desonra imperdoável.

Caso as frotas imperiais fossem restituídas de seu poderio antigo, poderiam massacrar os bandidos do mar com facilidade. Mas o Imperador era fraco e mantinha políticas no mínimo inefetivas contra o aumento da pirataria. As restrições de tamanho às embarcações tinham que ser abolidas! O almirante não se conformava. Os chineses cada vez mais se encolhiam em suas terras, em vez de expandir as luzes de sua civilização a todos os bárbaros que os cercavam. Zhang Lei lembrava de ter visto alguns povoados inteiros sendo movidos para o interior, para que os piratas não tivessem o que saquear. Seguindo o mesmo princípio, o comércio com o exterior, principalmente com o Japão, foi proibido. Será que o Imperador Jiajing não compreendia que para proibir algo é necessário que se tenha algum tipo de poder coercitivo?

Os mares foram simplesmente entregues a toda corja de malfeitores e crápulas, enquanto negociantes honestos faliam perante as duras restrições impostas pelo regime. Mas o almirante não era ingênuo, muito menos ignorante. Sabia que de alguma forma tudo isso se encaixava com a figura de Yan Song e seus comparsas. Afinal, eles exibiam cada vez mais opulência enquanto boa parte da população desmoronava em pura miséria. Jiajing demonstrava pouco ou nenhum interesse por assuntos de estado, dando uma enorme brecha no poder para que seus incompetentes e desonestos ministros guiassem o império da maneira que lhes convinha. A corrupção atingia cada província e prefeitura do país, era absolutamente normal ver um guarda sendo subornado. Zhang Lei sentia pura repulsa por Yan Song, não se conformava em como o ministro colocava seus interesses pessoais em um patamar superior aos do império, este ato, acima de tudo, representava uma ofensa violenta aos seus ancestrais. Era como se ele cupisse em toda a sabedoria e tradição da milenar civilização chinesa.

-Não há mais honra entre os homens...

Suas fracas palavras perderam-se ao vento que soprava forte naquela quente manhã de verão. As águas do delta do Rio da Pérola estavam agitadas e à distância, olhos argutos poderiam identificar a formação de uma tempestade. Mas poucos tinham a atenção presa aos mares do sul. Os olhares curiosos voltavam-se a uma pequena península a sudoeste, lar de piratas sanguinários e de estranhos homens de pele branca. Algumas pequenas embarcações pontilhavam sua costa, eram de pesca, Zhang Lei não tinha dúvida. O que não tinha certeza era se os narigudos os receberiam pacificamente. Gritou ordens para que seus marinheiros ficassem em prontidão, esperando pelo pior. Os guerreiros entraram em formação com disciplina férrea. Suas armaduras com escamas de ferro brilhavam ao sol, concedendo-lhes um aspecto impressionante. Eram bons homens. Os melhores, pensou o almirante com orgulho.

A frota chinesa consistia em sete juncos de guerra fortemente armados. Todos possuíam três mastros e chegavam aos trinta metros de comprimento. Suas enormes velas segmentadas impulsionavam-nos com incrível eficiência, fazendo as belíssimas embarcações deslizarem agilmente em meio as ondas. Cada junco transportava cerca de cento e vinte soldados, entre eles arqueiros, arcabuzeiros e artilheiros. Uma força de mais de oitocentos homens que representava apenas uma pequena parte da - não tão mais - grandiosa marinha imperial da China. Eram os Tigres do Pérola, como gostavam de ser chamados, já que tinham a fama de lutar com ferocidade inigualável.

Não fora Zhang Lei que lhes garantira tal reputação, mas o almirante anterior, Qi Xiong. Ele repreendera com violência as incursões dos Wokou, causando sérias baixas aos corsários que assolavam as proximidades de Cantão. Morto em combate em uma épica batalha, foi vítima de um criminoso ainda em ascensão. Chang Tse-Lac. A partir daí o nome passou a impor respeito, admiração e terror. Os Tigres juraram vingança por seu carismático líder, inclusive Zhang Lei, que sendo um homem de meia-idade, crescera ouvindo as histórias do velho Qi Xiong. Todavia o crescente poderio do pirata vinha imputando uma série de derrotas consecutivas aos marinheiros do império, já que através de saques e pilhagens, Chang Tse-Lac aumentava sua frota com navios estrangeiros, alguns deles eram enormes máquinas de guerras européias.

Mas talvez o menor problema dos Tigres fosse o sanguinário e cruel Chang Tse-Lac. O almirante ouvira falar que os bárbaros das distantes terras do ocidente escravizavam outros povos sem dó. Chegavam como amigos, sob o pretexto de comerciar e então, quando menos se esperava, eles atacavam covardemente. Por causa disso, Zhang Lei seguia com um pé atrás as ordens do Imperador em firmar uma aliança com portugueses. De alguma maneira este pacto devia encher os cofres de Yan Song, porém o almirante não podia imaginar como. Mas de fato era a única explicação plausível para permitir o estabelecimento destes perigosos estrangeiros em terras chinesas.

Perdido em seus pensamentos, Zhang Lei não percebeu a aproximação de um de seus homens.

-Senhor, já estamos chegando.

O almirante deixou de lado todos os problemas de sua nação e levou uma luneta aos olhos. Podia ver um pequeno povoado do outro lado da península, pontinhos insignificantes moviam-se desesperadamente de um lado ao outro. Eles já tinham sido vistos. Para além disso, havia oito embarcações grandes atracadas no cais, todas com bandeiras do reino de Portugal hasteadas. Notou que cinco delas eram maiores, com imponentes castelos nas proas e nas popas. Havia duas linhas de canhão no deque, Zhang Lei imaginou o quão destrutivos seriam estes navios em uma batalha. Estremeceu frente a idéia de ter de enfrentá-los com os pequenos juncos que a marinha imperial empregava atualmente.

-Preparem um barco para mim. Vou até lá para mostrar que não queremos confusão.

O homem, que permanecera em pé rigidamente por um longo período de tempo, esperando as ordens enquanto o oficial observava o entreposto comercial dos bárbaros, fez uma rápida reverência a Zhang Lei e desapareceu em meio às dezenas de soldados que povoavam o convés.

Zhang Lei engoliu em seco. A tensão crescia ainda mais à medida que se aproximavam dos portugueses. Caso tivessem algum resquício de civilização, receberiam o almirante chinês com cortesia e ouviriam tudo que ele tinha para falar. Caso contrário, ele teria uma morte sem honra. Algo lhe dizia que tudo daria errado, mas que outra opção havia para evitar um combate?

Primeiras Palavras

O primeiro conto que publicarei aqui será chamado "Os Corsários de Macau". Ambientado no século XVI, contará sobre o início deste povoado português no extremo oriente. Escolhi este tema porque sempre me interessei por choques entre culturas diferentes, além do que é um momento pouco documentado que oferece muitas lacunas para a imaginação. É claro que não fiz uma vasta pesquisa, não sou um historiador ainda. Busquei na internet uma série de artigos e vi que não havia muita informação sobre os primórdios de Macau. Tentei recriar a época com base nas escassas informações que tive acesso. Não vou me alongar sobre esta questão, ao final do conto adicionarei uma nota sobre minha pequena pesquisa, tentando confrontar os fatos que encontrei com os que escrevi.

Por agora basta dizer que a história corre em torno de três figuras principais: Zhang Lei (um almirante da marinha chinesa), Chang Tse-Lac (um terrível e célebre pirata chinês) e João Magalhães da Costa (um mercador/aventureiro português). Apenas Chang Tse-Lac pode ter sido real. Digo "pode", porque encontrei em alguns lugares que na verdade a história dos piratas de Macau era apenas uma anedota que refletia a incapacidade dos chineses em manter seus mares livres da ameaça corsária.

Sem mais delongas, vamos ao conto. Espero que gostem.