sábado, 12 de setembro de 2009

Os Corsários de Macau - A lenda dos galeões infernais (Parte V)

O vento assobiava com vontade em meio ao convés da Mercúrio, dando um aspecto ainda mais assustador à escuridão noturna. Não havia lua e o céu nublado encobria boa parte das estrelas. Apenas a chama da tocha dos vigias oferecia alguma resistência às trevas que os cercavam. Eram três homens no total, um deles era o segundo em comando, Pedro Gouveia, e os outros dois eram artilheiros experientes. A conversa girava em torno das monstruosidades que os oceanos guardavam e das experiências sobrenaturais de cada um longe da terra firme. Situação que não poderia ser diferente, já que os temores da última viagem ainda estavam bastante frescos nas mentes de cada tripulante.

-O que não entendo é porque Deus permite que estes demônios vaguem pelas águas. - disse José, inconformado, enquanto coçava sua vasta barba grisalha.

-Porque... - começou Vasco, o outro artilheiro - Porque somos todos pecadores, não ouvimos Suas palavras e, quando ouvimos, não fazemos o que elas mandam. Somos todos pecadores e merecemos Sua ira.

Gouveia apoiou-se na beirada da nau para tentar observar a terra firme, porém só conseguiu ver uma escuridão interminável com alguns poucos pontos de luz amarelada espalhados aqui e ali.

-Ainda mais nestas terras de infiéis. - retrucou Gouveia - Esta terra que não aceita as palavras de Cristo, com certeza é a mais pavorosa de todas. Imaginem o que não deve ter de monstros em meio a esta escuridão pagã... Creio que os galeões negros são o de menos por aqui.

Todos assentiram pesarosamente, enfiando a cabeça entre os ombros e tentando absorver o que acabara de ser dito. Haveria mesmo uma criatura infernal a espreita em canto obscuro do Oriente?

-Eu queria que Pero estivesse aqui... - murmurou José, tão baixo que foi quase que ininteligível aos outros.

E de certa forma era o desejo de todos. A presença de um homem de Deus entre eles certamente acalmaria os ânimos dos três vigias noturnos, que agora rezavam para que o tempo passase logo e seus turnos chegassem ao fim.

O silêncio era praticamente absoluto, exceto pelo som das ondas se chocando contra o casco de madeira da nau. Até o vento se calara frente ao tão sombrio clima que se abatera entre os homens. Pedro Gouveia ainda permanecia com os olhos voltados à terra, e agora já distinguia a silhueta de Amacao. Tentara imaginar-se em terra firme, dentro de uma casa de pedra bem protegida, com uma linda mulher aquecendo a cama ao seu lado. Suspirou. Nunca pensou que tal coisa passaria por sua cabeça. Nunca gostara de estabilidade, sua vida era dinâmica, extremamente mutável, uma aventura sem fim pelos infindáveis mares do mundo. Mas agora uma inesperada fraqueza atingiu seu espírito, toda esta insegurança de sua vida atingiu-lhe como um tiro de canhão. Acho que estou ficando velho para isso, pensou.

Então algo cortou-lhe os pensamentos. Parecia vir do casco do outro lado da nau, e certamente não era as ondas do mar. Sinalizou aos outros para que ficassem em silêncio absoluto e, após pegar seu arcabuz, caminhou com cautela até a outra borda da embarcação. Os outros dois seguiram-no alguns passos atrás, carregando a tocha para iluminar o caminho. O som repetiu-se e agora tudo ficou claro. Havia algo subindo pelo casco! Pedro freou o movimento a apenas dez passos da borda e apontou o arcabuz para a frente, esperando o que quer que fosse subir para então eliminá-lo.

-Rápido, acordem os outros. Estamos sob ataque! - sussurrou Gouveia aos artilheiros, enquanto o coração disparava no peito.

Assim que os outros dois vigias partiram, a escuridão tomou conta e, com os olhos desacostumados, Pedro Gouveia sentiu o medo dominando-o por completo. Teria que se guiar apenas pelos ouvidos agora, pelo menos até que seus olhos conseguissem distinguir silhuetas na noite. Uma gota de suór escorreu de sua testa até o pescoço, um silêncio agoniante se abatera em volta, dando margem para a imaginação do segundo em comando florescer como a de uma criança. Passou a imaginar uma invasão de criaturas monstruosas e uma delas estava ao seu lado, apenas esperando o momento certo de cortar-lhe a garganta. Prendeu a respiração. Moveu o arcabuz de um lado ao outro e aliviou-se a constatar que não havia algo ao seu lado. Apertou com força a cruz em seu bolso e rezou a Deus para guiar sua arma em tal momento de crise. Então algo tocou o convés de leve, e antes que isso ficasse registrado em sua mente, o dedo já puxava o gatilho.

O estrondo violento do disparo cortou o silêncio da noite, e o clarão da explosão revelou uma figura humana toda mbrulhada em panos negros tombando do convés em direção ao gelado mar do sul da China. Mal deu para Pedro Gouveia piscar os olhos e uma dúzia de novos invasores já se espalhavam pelo convés da Mercúrio. Em um rápido movimento, o português lançou o arcabuz ao chão e desembainhou sua espada, a tempo de evitar uma primeira investida inimiga. O choque entre as duas lâminas foi forte, forçando um passo atrás do defensor solitário, que mal teve tempo de se reabilitar e já viu-se bloqueando mais três impiedosos golpes.

Os ataques não paravam de vir e, em meio às trevas, apenas o som das lâminas cortando o ar guiava a espada do português. Após uma seqüência de mais cinco golpes, Pedro Gouveia foi cercado pelos invasores. O suór já tomava-lhe o corpo inteiro e o desgaste provocado pelo intenso combate era claramente perceptível em sua respiração. Onde estariam os reforços? Será que José e vasco haviam sido pegos no meio do caminho? O imediato xingou baixinho. Precisava alertar os outros sobre o ataque, caso contrário a Mercúrio seria tomada e pilhada. Pensou logo em João. O homem perderia o investimento de uma vida inteira. Apertou com força o punho da espada e trincou os dentes. Só havia uma coisa a se fazer...

-Estamos sob ataque!!!!! - berrou com tamanha força que sentiu os pulmões e a garganta queimando.

E em meio a um turbilhão de lâminas, sangue e gritos, Pedro Gouveia pereceu brutalmente. Porém sua valentia não foi em vão. Uma turba de marinheiros portugueses brotou como um enxame no combate. E, em uma fúria incontrolável, lutaram como demônios por seus companheiros perdidos.

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