terça-feira, 21 de julho de 2009

Os Corsários de Macau - Prólogo

Zhang Lei estava claramente tenso. Não suportava a idéia de ter que lidar com os bárbaros brancos e narigudos. Eram completamente imprevisíveis, arrogantes e violentos. Mais perigosos que os mongóis, sem dúvida. O Imperador é um completo idiota, pensou, nem suas concubinas o toleram, chegaram ao ponto de tentarem arrancar-lhe a vida em um atentado. Um inesperado sorriso brotou na face dura do almirante. Que tipo de homem é tão patético ao fazer amor que até prostitutas o rejeitam? Provavelmente o mesmo tipo que trai seu povo com pactos por demais generosos com bárbaros. As feições de Zhang Lei tornaram-se sombrias novamente. Ele podia tolerar o abandono da Cidade Proibida e até as cruéis perseguições aos budistas, mas nunca a fraqueza frente à ameaça pirata e bárbara. Isto é uma desonra imperdoável.

Caso as frotas imperiais fossem restituídas de seu poderio antigo, poderiam massacrar os bandidos do mar com facilidade. Mas o Imperador era fraco e mantinha políticas no mínimo inefetivas contra o aumento da pirataria. As restrições de tamanho às embarcações tinham que ser abolidas! O almirante não se conformava. Os chineses cada vez mais se encolhiam em suas terras, em vez de expandir as luzes de sua civilização a todos os bárbaros que os cercavam. Zhang Lei lembrava de ter visto alguns povoados inteiros sendo movidos para o interior, para que os piratas não tivessem o que saquear. Seguindo o mesmo princípio, o comércio com o exterior, principalmente com o Japão, foi proibido. Será que o Imperador Jiajing não compreendia que para proibir algo é necessário que se tenha algum tipo de poder coercitivo?

Os mares foram simplesmente entregues a toda corja de malfeitores e crápulas, enquanto negociantes honestos faliam perante as duras restrições impostas pelo regime. Mas o almirante não era ingênuo, muito menos ignorante. Sabia que de alguma forma tudo isso se encaixava com a figura de Yan Song e seus comparsas. Afinal, eles exibiam cada vez mais opulência enquanto boa parte da população desmoronava em pura miséria. Jiajing demonstrava pouco ou nenhum interesse por assuntos de estado, dando uma enorme brecha no poder para que seus incompetentes e desonestos ministros guiassem o império da maneira que lhes convinha. A corrupção atingia cada província e prefeitura do país, era absolutamente normal ver um guarda sendo subornado. Zhang Lei sentia pura repulsa por Yan Song, não se conformava em como o ministro colocava seus interesses pessoais em um patamar superior aos do império, este ato, acima de tudo, representava uma ofensa violenta aos seus ancestrais. Era como se ele cupisse em toda a sabedoria e tradição da milenar civilização chinesa.

-Não há mais honra entre os homens...

Suas fracas palavras perderam-se ao vento que soprava forte naquela quente manhã de verão. As águas do delta do Rio da Pérola estavam agitadas e à distância, olhos argutos poderiam identificar a formação de uma tempestade. Mas poucos tinham a atenção presa aos mares do sul. Os olhares curiosos voltavam-se a uma pequena península a sudoeste, lar de piratas sanguinários e de estranhos homens de pele branca. Algumas pequenas embarcações pontilhavam sua costa, eram de pesca, Zhang Lei não tinha dúvida. O que não tinha certeza era se os narigudos os receberiam pacificamente. Gritou ordens para que seus marinheiros ficassem em prontidão, esperando pelo pior. Os guerreiros entraram em formação com disciplina férrea. Suas armaduras com escamas de ferro brilhavam ao sol, concedendo-lhes um aspecto impressionante. Eram bons homens. Os melhores, pensou o almirante com orgulho.

A frota chinesa consistia em sete juncos de guerra fortemente armados. Todos possuíam três mastros e chegavam aos trinta metros de comprimento. Suas enormes velas segmentadas impulsionavam-nos com incrível eficiência, fazendo as belíssimas embarcações deslizarem agilmente em meio as ondas. Cada junco transportava cerca de cento e vinte soldados, entre eles arqueiros, arcabuzeiros e artilheiros. Uma força de mais de oitocentos homens que representava apenas uma pequena parte da - não tão mais - grandiosa marinha imperial da China. Eram os Tigres do Pérola, como gostavam de ser chamados, já que tinham a fama de lutar com ferocidade inigualável.

Não fora Zhang Lei que lhes garantira tal reputação, mas o almirante anterior, Qi Xiong. Ele repreendera com violência as incursões dos Wokou, causando sérias baixas aos corsários que assolavam as proximidades de Cantão. Morto em combate em uma épica batalha, foi vítima de um criminoso ainda em ascensão. Chang Tse-Lac. A partir daí o nome passou a impor respeito, admiração e terror. Os Tigres juraram vingança por seu carismático líder, inclusive Zhang Lei, que sendo um homem de meia-idade, crescera ouvindo as histórias do velho Qi Xiong. Todavia o crescente poderio do pirata vinha imputando uma série de derrotas consecutivas aos marinheiros do império, já que através de saques e pilhagens, Chang Tse-Lac aumentava sua frota com navios estrangeiros, alguns deles eram enormes máquinas de guerras européias.

Mas talvez o menor problema dos Tigres fosse o sanguinário e cruel Chang Tse-Lac. O almirante ouvira falar que os bárbaros das distantes terras do ocidente escravizavam outros povos sem dó. Chegavam como amigos, sob o pretexto de comerciar e então, quando menos se esperava, eles atacavam covardemente. Por causa disso, Zhang Lei seguia com um pé atrás as ordens do Imperador em firmar uma aliança com portugueses. De alguma maneira este pacto devia encher os cofres de Yan Song, porém o almirante não podia imaginar como. Mas de fato era a única explicação plausível para permitir o estabelecimento destes perigosos estrangeiros em terras chinesas.

Perdido em seus pensamentos, Zhang Lei não percebeu a aproximação de um de seus homens.

-Senhor, já estamos chegando.

O almirante deixou de lado todos os problemas de sua nação e levou uma luneta aos olhos. Podia ver um pequeno povoado do outro lado da península, pontinhos insignificantes moviam-se desesperadamente de um lado ao outro. Eles já tinham sido vistos. Para além disso, havia oito embarcações grandes atracadas no cais, todas com bandeiras do reino de Portugal hasteadas. Notou que cinco delas eram maiores, com imponentes castelos nas proas e nas popas. Havia duas linhas de canhão no deque, Zhang Lei imaginou o quão destrutivos seriam estes navios em uma batalha. Estremeceu frente a idéia de ter de enfrentá-los com os pequenos juncos que a marinha imperial empregava atualmente.

-Preparem um barco para mim. Vou até lá para mostrar que não queremos confusão.

O homem, que permanecera em pé rigidamente por um longo período de tempo, esperando as ordens enquanto o oficial observava o entreposto comercial dos bárbaros, fez uma rápida reverência a Zhang Lei e desapareceu em meio às dezenas de soldados que povoavam o convés.

Zhang Lei engoliu em seco. A tensão crescia ainda mais à medida que se aproximavam dos portugueses. Caso tivessem algum resquício de civilização, receberiam o almirante chinês com cortesia e ouviriam tudo que ele tinha para falar. Caso contrário, ele teria uma morte sem honra. Algo lhe dizia que tudo daria errado, mas que outra opção havia para evitar um combate?

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