terça-feira, 25 de agosto de 2009

Os Corsários de Macau - A lenda dos galeões infernais (Parte IV)

A rústica sala de jantar parecia um tanto ao quanto vazia agora que a garota retirara-se para a cozinha. A longa mesa de madeira polida ainda apresentava traços da refeição. E que refeição! João passou a mão sobre o estômago avantajado, em um ato inconsciente de aprovação. Não comia algo tão saboroso há o que? Séculos? Recostou-se um pouco mais curvo na cadeira, tentando acomodar melhor o peso do bacalhau. Pensou nos homens que mandara ficar em terra, provavelmente estavam completamente bêbados e cercados por mulheres. Fez uma careta. Porque diabos decidira ficar na casa do velho mercador? Sentia falta de farrear com seus marinheiros. Não houvera festa na última viagem, recordou-se amargamente. Suspirou. De um modo ou de outro o final de uma refeição sempre parecia trazer a melancolia. Talvez porque fosse um dos únicos momentos em que as pessoas relaxassem, esquecendo as tarefas diárias e perdendo-se em labirintos intermináveis de lembranças. E lembranças sempre trazem a tristeza. Sempre.

Quando Amélia retornou à sala de jantar, encontrou o jovem capitão com os olhos pregados no teto. Havia tanto sofrimento naquele olhar. Ela se perguntou o quanto o mar podia ser terrível com os homens. E o quanto podia ser libertador também. Sentira um fascínio imenso pelas incontáveis histórias de João, pelos infinitos lugares que conhecera, pelas diferentes pessoas que cruzaram seu caminho. Sorriu ao pensar em Portugal. No entanto, sua única lembrança da terra natal era o forte cheiro de peixe do porto de Lisboa. Sentiu uma pontada de inveja do homem ali sentado. Sua vida era uma aventura, não havia horizonte, não havia limitações... Haveria algo de melhor que isso? Mas João parecia tão abatido. Deu alguns passos a frente, mal controlando a curiosidade que a dominava por dentro.

-A comida estava ótima... - disse João, sem desviar o olhar para a garota.

-Obrigada.

Ela permaneceu parada, observando-o. A tristeza lhe dava um charme absurdo. Os olhos de Amélia não desgrudavam do rosto do capitão. A garota não entendia bem o que era, João parecia mais maduro quando não apresentava o seu característico bom humor. Passava de um moleque brincalhão e bastante superficial, para um homem misterioso, com um ar de sabedoria que a atraía tremendamente.

-O que você quer?

Não havia delicadeza na pergunta de João, muito menos cavalheirismo. Por alguns segundos, Amélia permaneceu parada, completamente chocada. Não estava acostumada com isso. Passara uma vida inteira sendo paparicada por rapazes de todos os tipos que passavam por Amacao, inclusive por orientais dos mais estranhos. Qual era a do capitão? Parecera interessado por ela no começo, fazendo brincadeiras e insinuações. Elogiava-a de tempos e tempos. E agora isso? Havia algo ali. Algo terrível o pressionando por dentro, algum tipo de fardo ou perda. Então os olhos negros do capitão fitaram-na. A melancolia tocou seu coração como uma mão gélida. Amélia prendeu a respiração enquanto esboçava uma respota, mas nada saiu. Não conseguia organizar os pensamentos com aquele olhar penetrante.

-Não a culpo por sua curiosidade, garota. Não mesmo. Mas há certas histórias que as mulheres devem ser poupadas de ouvir.

Faça alguma coisa, faça alguma coisa, faça alguma coisa... Sua mente estava descontrolada. Galeões negros, Camões, piratas, desmembramentos, crueldade. Maus presságios. Porque essas coisas não saíam de sua cabeça? Fechou o punho com força. Sentia-se irritado, abatido e profundamente cansado. Só queria largar-se no braços da mulher e chorar, chorar como um garotinho. Não aguentava mais aquela interminável sensação de estar sendo perseguido, vigiado. Achara que passaria quando chegasse em terra, ledo engano. Havia algo de demoníaco naqueles corsários filhos da mãe. Soltou o ar vagarosamente. Apenas seu orgulho masculino o impedia de desabar.

-Sei que foram perseguidos por piratas, é isso que o incomoda? - tentou Amélia, deixando um leve rubor transparecer ao ver a careta de desgosto do capitão.

-As pessoas aqui são simplesmente incapazes de manter a boca fechada, não é?

Amélia orgulhava-se por sua paciência e por sempre tratar bem os outros. Mas a insolência de João a feriu como uma faca. Como ousava tratá-la como uma vagabunda qualquer? Ainda mais em sua casa. O rubor espalhou-se das bochechas para o pescoço, mas não havia vergonha ali, apenas fúria, pura e simples fúria. Os olhos dela queimavam como as labaredas das profundezas do inferno. No entanto, João permaneceu impassível, encarando a garota demoradamente. Ela imaginou se haveria desafio nos modos do capitão, porém não conseguiu identificá-lo.

-Como ousa tratar-me desta maneira em minha própria casa?

-Pare de se meter onde não é chamada então, garota. Você não sabe o que é estar sozinho durante semanas... Com a vida de dezenas de homens em suas mãos... Com... - João pigarreou com força, enquanto buscava clarear a mente - Você não sabe o que é o inferno.

As últimas palavras foram cuspidas da boca do capitão quase como se fossem xingamentos. Ele nunca fora de se abrir para amigos, muito menos para estranhos. As perguntas de Amélia deixavam-no desconfortável e mau humorado, tudo que passava em sua cabeça era grosseria. Não queria isso, não mesmo. Mas parecia haver pelo menos dois Joãos e um não conseguia influenciar o outro de jeito nenhum. O primeiro era divertido, amigável e adorara a graciosa jovem à sua frente. Porém o segundo... O segundo queria esganá-la por sua intromissão, por sua curiosidade estúpida.

A entrada súbita do Sr. Alcântara na sala impossibilitou qualquer reação de Amélia. O homem estava inquieto e um pouco ofegante, havia espanto em seus olhos.

-Capitão, capitão! Venha cá! Venha rápido à minha sala de leituras!

João levantou num pulo. O que era agora? O peixe da filha já estava acomodado em seu estômago. Será que o velho tinha outra surpresa agradável por trás de toda a afobação?

-Com sua licença, senhorita. - disse o segundo João, com puro escárnio no tom de voz.

E os dois homens sumiram por trás da porta de madeira da sala de leituras. Deixando Amélia sozinha. Sozinha para nutrir sua irritação por João. E sozinha para amadurecer sua paixão por João. Xingou baixinho. O que estava acontecendo? Porque o mais idiota dos homens que já conhecera não saía de seus pensamentos? Acolheu-se em uma cadeira na sala de jantar. A imagem do sorriso do capitão parecia assombrar sua cabeça. Eu te odeio. Eu te odeio. Eu te odeio!

E neste exato momento um poderoso som cortou-lhe os pensamentos, como um ribombar de um trovão do Juízo Final. O terror chegara a Amacao.

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