quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Os Corsários de Macau - A lenda dos galeões infernais (Parte II)

Não havia muito movimento no estabelecimento, já que a tripulação de João ainda trabalhava. Levando de lá para cá, incessantemente, quilos e mais quilos de suprimentos para a nau. O destino final era Nagasaki, e então a velha Mercúrio seguiria de volta para os distantes e congestionados portos de Portugal. Apesar de ter sido guiado muito mais pelo ímpeto aventureiro que corria em suas veias, do que pela ganância, João sabia que, se tudo corresse bem, voltaria com uma pequena fortuna para sua amada terra. Só que as malditas embarcações negras haviam tornado-se muito mais do que uma pedra em seu sapato, eram um tormento contínuo. Podiam muito bem estar à espreita do capitão a apenas alguns quilômetros de Amacao, esperando que ele zarpasse para então capturá-lo em uma emboscada. Havia sempre a opção de dar meia volta e fugir, esquecendo o Japão e todo o seu mistério. Mas João jamais a consideraria, parte por causa do orgulho, parte por causa das histórias fantásticas que ouvira daquela que seria, talvez, a terra mais distante e desconhecida de todo o mundo.

Fazia pouco mais de uma década que o primeiro português pisara em terras japonesas, e João se perguntava o quão excitante deve ter sido. Conhecer um povo de olhos puxados completamente estranho, com panos coloridos cobrindo seus corpos e exóticas construções em meio a uma exuberante mata. Pensou se suas mulheres eram bonitas e bem educadas, e não criaturas estúpidas e terrivelmente acabadas como as de Goa. Uma terra com mulheres lindas fazia toda a diferença, pensou João, sorrindo como um menininho. Imaginou as riquezas intermináveis do Japão, pelo menos assim que o lugar era descrito por seus compatriotas, cheio de mercadorias valiosas para se trocar, ou mesmo tomar. Alguns momentos de selvageria iluminaram a face do português. Ele nunca fora de roubar, mas de alguma a forma a idéia lhe dava prazer, afinal, havia maior aventura do que saquear e depois fugir abarrotado de produtos valiosos?

Afastou o pensamento da cabeça rapidamente, já que uma rápida conexão em sua mente trouxe de volta os galeões negros. Eles eram completamente livres e viviam de intermináveis aventuras nos mares, mas a troco de que? Os piratas eram todos amaldiçoados, todos pagãos. Além do que atravancavam uma das maiores paixões de João, o comércio. Suspirou, irritado por ter levado seus pensamentos longe demais. Seu pai lhe daria uma bela de uma surra se ouvisse de sua boca qualquer coisa relacionada a saques e pilhagem. Tomou um gole bem servido de vinho. Lembrou das palavras do velho, ele vivia dizendo antes de João viajar que, como português, o dever maior seria o de levar a civilização aos bárbaros do oriente. Seres que viviam sem as palavras do Senhor e sem leis, um português jamais devia se rebaixar ao nível deles, mas sim mostrar o caminho a ser seguido. Por um momento imaginou centenas de naus portuguesas desembarcando em cada porto obscuro do mundo, espalhando cada aspecto de sua cultura para homens primitivos, ensinando-os a luz da civilização européia. Será que este era o início de uma nova era? Uma época de desenvolvimento jamais conhecida pela humanidade, que guiada pelo ímpeto e coragem da cristandade, alcançaria glórias jamais imaginadas antes. Um jorro enorme de orgulho percorreu o capitão, enquanto tomava mais um gole de sua bebida.

-Psssst!

O chamado de um desconhecido cortou os pensamentos do capitão, que observou a figura demoradamente. O homem usava roupas simples, com uma capa negra cobrindo-lhe as costas e os ombros. Tinha um rosto endurecido, como o de um combatente, e o tapa olho do lado direito confirmava a hipótese e lhe dava um aspecto aterrador. O cabelo era curto e castanho, assim como a cheia e bem cuidada barba. João, cheio de suspeitas e reservas, perguntou ao taverneiro se o homem era confiável.

-Luís é nosso poeta - disse o velho, com sua voz trêmula e rouca. Ele era tão magro, tão magro, que parecia um esqueleto. Os olhos fundos, o rosto estreito e enrugado, as mãos praticamente não apresentavam carne e era agoniante ver como cada tendão e osso se moviam debaixo da pele - Passa a maior parte do tempo em uma gruta aqui por perto, escrevendo e escrevendo. Não tem muitos amigos, mas definitivamente não causa problemas.

Mesmo com as palavras do taverneiro, João sentiu-se tentado a ignorar o tal de Luís. Algo nele não o agradava, não sabia o que. E porque diabos o estaria chamando? Nunca vira aquele homem antes, não conseguia imaginar o que teria para tratar com ele. Tomou mais um pouco de vinho. Agora Luís demonstrou certa impaciência, chamando o capitão com a mão. Acabou decidindo que não havia nada demais em ir até lá, o que um poeta sozinho poderia fazer com um marinheiro experiente? No máximo contar-lhe sobre os perigos das sereias e dos monstros marítimos. Riu da idéia, seguindo sem pressa até a mesa do homem, que não demonstrou sentimento algum em suas feições duras.

-Você é o capitão da Mercúrio, não é? - perguntou Luís, estendendo a mão a João.

João estremeceu com a pergunta. Como ele sabia? Mal havia chegado em Amacao e alguém que nunca vira em sua vida já sabia quem ele era? As notícias corriam tão rápido assim? Forçou-se a não demonstrar o que pensava.

-Quem deseja saber?

-Luís Vaz de Camões.

A resposta fora seca e carregada de certa arrogância. Ou seria orgulho? João não conseguiu identificar. Porém o nome lhe soou familiar, já ouvira em algum lugar, tinha certeza, todavia sua memória lhe traía e nada de relevante pôde ser resgatado.

-Sim, sou o capitão da Mercúrio. João Magalhães da Costa. - ele falou com convicção e confiança, apertando a mão do poeta com força.

Luís convidou o capitão a sentar-se, o que João fez de bom grado. Não parava de pensar qual seria a razão do homem ter lhe chamado. Será que sabia da sinistra perseguição? Dos galeões fantasmas? Recostou-se na cadeira com certo desconforto. Havia algo no poeta que transparecia uma sabedoria tremenda, como se conhecesse cada canto isolado do planeta, cada pessoa que o habitava e cada pensamento que passava por suas cabeças.

Por intermináveis momentos, um silêncio desagradável se abateu entre os dois. O olho bom de Luís permanecia voltado ao desconhecido, como se observasse um lugar distante em busca de inspiração, ou talvez, conhecimento. João logo lembrou-se das histórias gregas que seu pai lhe contara quando criança, de umas criaturas mitológicas chamadas Musas. Dizia-se que elas sabiam de tudo, eram filhas da Memória, e que os poetas iam até elas pedir inspiração para seus cantos. Até o melhor deles, Homero. O capitão achou que talvez fosse isso que Camões fazia, enquanto o silêncio entre os dois perdurava por quase cinco minutos. Que figura enigmática, pensou João, olhando o homem com certo apreço após recordar-se das antigas histórias do falecido pai.

-Chang Tse-Lak... - a voz de Camõs saiu como um gemido sinistro e o olho bom tornou-se vítreo, como se o homem estivesse em um transe bizarro.

O capitão sentiu uma pontada de pavor atravessando suas vísceras. Olhou interrogativamente ao taverneiro, mas este parecia tão perplexo quanto ele. Em um estalo seco, novas palavras saíram do poeta, uma a uma, eriçando os pêlos de João a cada estalada.

-Galeões negros... Morte... Pilhagem... Caos...

E da mesma maneira que veio, o transe desapareceu. E Camões nem pareceu notá-lo enquanto enchia a sala de palavras maravilhosas e conhecimentos inenarráveis.

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