quarta-feira, 24 de março de 2010

Os Corsários de Macau - A lenda dos galeões infernais (Parte VI)

Ao aproximar-se da praia, o almirante chinês teve uma melhor visão do entreposto comercial dos ocidentais. Havia uma série de pequenos casebres de pedra com telhados de palha e, mais próximo ao chamado Porto Interior, em uma ponta rochosa de terra que invadia o mar, havia o velho e abandonado templo de A-Má. As plantas já tomavam conta dele, se embrenhando em cada fresta das rochas e espalhando-se em todas as direções possíveis. Seria este o destino de todas as civilizações? Zhang Lei era um homem culto, fascinado por conhecimentos passados e pela rica história de seu povo. ele sabia que os chineses já eram milenares e que quase nenhuma civilização no mundo gozava desta característica. Impérios surgiam e mesmo os mais grandiosos um dia caíam. Lei costumava compará-los a uma simples vida humana. Nasciam, cresciam, se desenvolviam e reproduziam. Então um belo dia decaíam, envelheciam e morriam. O tempo era cruel, impiedoso. Já enterrara muitas maravilhas do homem e enterraria muito mais ainda.

E a visão do velho templo de a-Má tomado pela natureza, somado com a crescente invasão dos piratas e das incursões européias cada vez mais ousadas, causava um certo desconforto no almirante. Alguma coisa lhe dizia que ele presenciava momentos históricos, os últimos suspiros de sua amada China. Imperador fraco, corrupção alarmante, total despreparo militar, criminosos a solta, estrangeiros gananciosos. Eram todos os ingredientes da sopa divina que designa o fim de uma era, de um povo. Mas a personalidade forte e orgulhosa do oficial recusava-se a aceitar isso.

-Isso é loucura! - exclamou Zhang Lei, deixando escapar seus pensamentos sem querer.

Os vinte homens que lhe acompanhavam no barco fitaram-no com espanto.

-Estão olhando o que? Nunca pensaram alto, não? Voltem a remar! Agora! - esbravejou o almirante. Seus subordinados nem pestanejaram, voltaram logo às suas tarefas.

Continuou então a varredura do terreno. Seus olhos agora foram além do templo, observando cada detalhe das embarcações estacionadas no Porto Interior. Não havia nada de novo em relação ao que vira de longe, exceto o fato de que uma das naus mais miúdas estava bastante danificada. Velas perfuradas e rasgadas, mastro principal tombado, inúmeras lacerações no convés, além de dezenas de buracos no casco e no castelo de proa. Zhang Lei logo deduziu que aquela embarcação passara por maus bocados, sendo bombardeada por uma nuvem de balas de canhões.E não podia deixar passar o último detalhezinho. Mercúrio. Suspirou. Imaginou-se no lugar do capitão dela. Estaria com uma dor de cabeça tremenda, ainda mais se fosse um mercador. Mercadorias avariadas, viagem comprometida, perdas incalculáveis...

Desviou a atenção para a praia agora. Havia pelo menos uma centena de bárbaros bem equipados em formação. Peitorais de ferro arredondados e prateados brilhavam à luz do sol, assim como os capacetes adornados com um tipo de penugem esverdeada. As calças eram bem folgadas nas coxas, só apertando quando se aproximavam das botas. Na cintura, cintos de couro sustentavam espadas com cabos dourados. E os braços seguravam enormes mosquetes amarronzados. Todos tinham uma fisionomia similar, com barbas bem escuras e os enormes narizes despontando no rosto. Zhang Lei sempre se perguntava como esses tais de portugueses conseguiam diferenciar um indivíduo do outro.

O "comitê de recepção" ainda contava com mais oito homens posicionados à frente dos soldados, provavelmente eram todos os capitães-do-mar que se encontravam em Amacao. Eram as autoridades bárbaras. Tinham vestimentas bem mais elaboradas e coloridas, com enormes capas de um verde bem escuro pendendo em suas costas. Exceto um. Ele tinha um peitoral de ferro bem vagabundo que nem mais brilhava de tão opaco e sujo. Sua roupa toda preta encontrava-se em farrapos e seu rosto parecia ferido. Devia ser o capitão da Mercúrio, sem dúvidas. Zhang Lei nunca fora de se amedrontar fácil, mas a expressão daquele homem estava tão selvagem que arrepios tocaram-lhe a espinha. E uma frase não parou de martelar em sua cabeça até que aportasse na praia portuguesa. "Estou morto, estou morto, estou morto...".