quarta-feira, 22 de julho de 2009

Os Corsários de Macau - A lenda dos galeões infernais (Parte I)

Era estranho finalmente colocar os pés em terra firme. Não sentir o balanço das ondas em alto mar deixou João desorientado por uns momentos. Quanto tempo havia desde que partira de Malacca! Estremeceu frente às lembranças da viagem. Só a imagem dos sinistros galeões negros sem bandeira já deixavam os pêlos de sua nuca em pé. Histórias e mais histórias correram como água por sua tripulação, dizia-se que aqueles navios eram lar de criaturas abissais. Elas vagavam os oceanos em busca de marinheiros para escravizar. Seriam mil anos de tortura e trabalho forçado. Pero, o jesuíta que os acompanhava, vivia ralhando com os homens, dizendo que só tolos para acreditar em tão infundadas superstições. Porém João sempre o via rezando o terço toda a noite, com puro terror em seus olhos. O fato é que os sombrios barcos apareciam e desapareciam ao bel prazer, sempre que o capitão pensava que despistara-os, no próximo dia já brotavam pontos negros no horizonte novamente.

Não foram poucas as manobras de fuga. Quantas noites ele não mandará apagar todas as luzes da nau? Deixando-a à deriva até o amanhecer. Na tarde seguinte lá estavam os perseguidores novamente. Tentara também algumas pequenas modificações da rota para pegar ventos fortes a favor. Recordava das velas insufladas puxando a embarcação com tamanho vigor que pareciam que iam romper a qualquer momento. Mas não adiantava, os galeões eram velozes como o diabo. João não entendia como monstros tão enormes conseguiam equiparar-se à Mercúrio. Sempre gabara-se da estonteante velocidade de sua nau, mas aqueles demônios obscuros do mar não apresentavam qualquer dificuldade em acompanhá-la numa corrida.

Olhou para o horizonte mais uma vez. Pegara este hábito depois de tão aterrorizantes provações. Um friozinho incômodo na barriga sempre o instigava a olhar e olhar de novo para o mar. Será que os perseguidores encontrariam-no em Amacao? Tocou o crucifixo pendurado no peito para afastar o azar. Pero, que estava ao seu lado, riu do temor do capitão. Mas João podia sentir o pavor exalando dos poros do jesuíta. Sorriu como uma criança que descobre o segredo mais íntimo de outrem.

Caminhou alguns vagarosos passos na escura areia da praia. A poucos metros havia uma rústica construção de pedra, de onde iam e viam vários de seus marinheiros. Eles carregavam pesados tonéis e caixotes de madeira até alguns botes estacionados na margem. De lá seguiam até Mercúrio. Um rechonchudo senhor de idade observava o movimento incansavelmente, anotando cada mercadoria que saía de seu estabelecimento. Ah, o bom e velho comércio! Bendita seja esta terra portuguesa em meio aos ímpios, pensou João. A comida estocada em Malacca fora devorada nas longas semanas de fuga. O capitão lançara ao mar, pessoalmente, três de seus melhores tripulantes acometidos pela fraqueza da inanição. Um deles era o melhor artilheiro que João já vira, acertava disparos que nem Deus imaginaria ser possível. Recordou do tiro certeiro que matara um capitão francês a o que? Uns oitocentos metros? Um quilômetro? Por aí. Gargalhou incontrolavelmente. Fernão era um canalha mortal com um quarto de colubrina.

Arfou pesadamente para recuperar o fôlego. Mais uma vez pegou os olhos voltados ao horizonte. Pensou que provavelmente teria pesadelos para sempre com os episódios das últimas semanas. Grunhiu de desprazer. Que tipo de criaturas vis habitariam os convés daqueles horripilantes galeões? Lembrou de todas suas vãs tentativas de identificá-los com a luneta. Não vira ninguém nas proas e ninguém nos mastros! Seriam embarcações fantasmas? João já ouvira tantos marinheiros experientes falando de seus encontros mórbidos com navios da morte. Joaquim Aleixo de Farias não dissera uma vez que abordara um destes navios? Um arrepio cortou toda a extensão de sua espinha. E havia uma série preocupante de pontos em comum entre as duas histórias. Joaquim não dissera também que fora seguido por velozes embarcações negras?

-Ainda pensando em nossos amigos malignos, João? - perguntou o jovem jesuíta, com um ar divertido.

-Não, não...

A resposta fora vaga e sem convicção. O capitão ainda não saíra de seus devaneios cada vez mais freqüentes, estaria ficando louco? Indagou Pero a si mesmo.

-Sei. Tire isso da cabeça, homem. Rezar algumas ave marias na igreja lhe será de grande ajuda. Vamos! - Pero tocou-lhe o ombro com leveza, convidando João a seguí-lo.

De inicío o capitão caminhou sem ânimo, como se os espíritos do mal dos galeões ainda o aprisionassem. As feições sombrias volta e meia encaravam o horizonte novamente, sempre retorcendo-se ao perceber que nada havia ali. Mas à medida que seus pés lhe guiavam para o meio de um aglomerado de casinhas de pedra, seu bom humor usual ressurgia de pouquinho em pouquinho. Como era bom ver compatriotas novamente! O pequeno entreposto comercial não se comparava a Lisboa, mas já lhe garantia um gostinho de seu tão distante e amado lar. As mulheres brancas e bem-vestidas com suas enormes saias e decotes voluptuosos, os homens de porte altivo discutindo negócios no bom e velho português, as residências - bem toscas comparadas com as de Portugal - mas muito mais charmosas do que os antiquados barracos das índias. Ainda havia aquela tão conhecida calma segurança, que só uma cruz no alto da casa do Senhor era capaz de proporcionar aos homens. Em meio às heresias pagãs do oriente, o perigo era constante e terrivelmente assustador.

Pero alegrou-se com o súbito jorro de vida que apoderou-se de seu companheiro. Mas havia pouco interesse do capitão em seguir até a igreja, seus olhos já desviavam-se constantemente para o "Sereias de A-Má". Irritou-se com o nome pagão do pequeno estabelecimento, porque marinheiros adoravam essas bobeiras míticas? Parou a caminhada a alguns passos da taberna, o que não era lá muito longe da paróquia também, afinal, o aglomerado de construções européias chamado de Amacao não passava de um minúsculo entreposto comercial entre Malacca e Nagasaki. João fitou-o interrogativamente. O missionário sorriu e deu de ombros, esboçando uma despedida. Antes que pudesse terminar o movimento, o marinheiro já se encontrava dentro do "Sereias". Longe de deixá-lo bravo, isto arrancou-lhe umas boas gargalhadas. O bom e velho João Magalhães da Costa estava de volta. E seguiu até a casa do Senhor claramente maravilhado.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Os Corsários de Macau - Prólogo

Zhang Lei estava claramente tenso. Não suportava a idéia de ter que lidar com os bárbaros brancos e narigudos. Eram completamente imprevisíveis, arrogantes e violentos. Mais perigosos que os mongóis, sem dúvida. O Imperador é um completo idiota, pensou, nem suas concubinas o toleram, chegaram ao ponto de tentarem arrancar-lhe a vida em um atentado. Um inesperado sorriso brotou na face dura do almirante. Que tipo de homem é tão patético ao fazer amor que até prostitutas o rejeitam? Provavelmente o mesmo tipo que trai seu povo com pactos por demais generosos com bárbaros. As feições de Zhang Lei tornaram-se sombrias novamente. Ele podia tolerar o abandono da Cidade Proibida e até as cruéis perseguições aos budistas, mas nunca a fraqueza frente à ameaça pirata e bárbara. Isto é uma desonra imperdoável.

Caso as frotas imperiais fossem restituídas de seu poderio antigo, poderiam massacrar os bandidos do mar com facilidade. Mas o Imperador era fraco e mantinha políticas no mínimo inefetivas contra o aumento da pirataria. As restrições de tamanho às embarcações tinham que ser abolidas! O almirante não se conformava. Os chineses cada vez mais se encolhiam em suas terras, em vez de expandir as luzes de sua civilização a todos os bárbaros que os cercavam. Zhang Lei lembrava de ter visto alguns povoados inteiros sendo movidos para o interior, para que os piratas não tivessem o que saquear. Seguindo o mesmo princípio, o comércio com o exterior, principalmente com o Japão, foi proibido. Será que o Imperador Jiajing não compreendia que para proibir algo é necessário que se tenha algum tipo de poder coercitivo?

Os mares foram simplesmente entregues a toda corja de malfeitores e crápulas, enquanto negociantes honestos faliam perante as duras restrições impostas pelo regime. Mas o almirante não era ingênuo, muito menos ignorante. Sabia que de alguma forma tudo isso se encaixava com a figura de Yan Song e seus comparsas. Afinal, eles exibiam cada vez mais opulência enquanto boa parte da população desmoronava em pura miséria. Jiajing demonstrava pouco ou nenhum interesse por assuntos de estado, dando uma enorme brecha no poder para que seus incompetentes e desonestos ministros guiassem o império da maneira que lhes convinha. A corrupção atingia cada província e prefeitura do país, era absolutamente normal ver um guarda sendo subornado. Zhang Lei sentia pura repulsa por Yan Song, não se conformava em como o ministro colocava seus interesses pessoais em um patamar superior aos do império, este ato, acima de tudo, representava uma ofensa violenta aos seus ancestrais. Era como se ele cupisse em toda a sabedoria e tradição da milenar civilização chinesa.

-Não há mais honra entre os homens...

Suas fracas palavras perderam-se ao vento que soprava forte naquela quente manhã de verão. As águas do delta do Rio da Pérola estavam agitadas e à distância, olhos argutos poderiam identificar a formação de uma tempestade. Mas poucos tinham a atenção presa aos mares do sul. Os olhares curiosos voltavam-se a uma pequena península a sudoeste, lar de piratas sanguinários e de estranhos homens de pele branca. Algumas pequenas embarcações pontilhavam sua costa, eram de pesca, Zhang Lei não tinha dúvida. O que não tinha certeza era se os narigudos os receberiam pacificamente. Gritou ordens para que seus marinheiros ficassem em prontidão, esperando pelo pior. Os guerreiros entraram em formação com disciplina férrea. Suas armaduras com escamas de ferro brilhavam ao sol, concedendo-lhes um aspecto impressionante. Eram bons homens. Os melhores, pensou o almirante com orgulho.

A frota chinesa consistia em sete juncos de guerra fortemente armados. Todos possuíam três mastros e chegavam aos trinta metros de comprimento. Suas enormes velas segmentadas impulsionavam-nos com incrível eficiência, fazendo as belíssimas embarcações deslizarem agilmente em meio as ondas. Cada junco transportava cerca de cento e vinte soldados, entre eles arqueiros, arcabuzeiros e artilheiros. Uma força de mais de oitocentos homens que representava apenas uma pequena parte da - não tão mais - grandiosa marinha imperial da China. Eram os Tigres do Pérola, como gostavam de ser chamados, já que tinham a fama de lutar com ferocidade inigualável.

Não fora Zhang Lei que lhes garantira tal reputação, mas o almirante anterior, Qi Xiong. Ele repreendera com violência as incursões dos Wokou, causando sérias baixas aos corsários que assolavam as proximidades de Cantão. Morto em combate em uma épica batalha, foi vítima de um criminoso ainda em ascensão. Chang Tse-Lac. A partir daí o nome passou a impor respeito, admiração e terror. Os Tigres juraram vingança por seu carismático líder, inclusive Zhang Lei, que sendo um homem de meia-idade, crescera ouvindo as histórias do velho Qi Xiong. Todavia o crescente poderio do pirata vinha imputando uma série de derrotas consecutivas aos marinheiros do império, já que através de saques e pilhagens, Chang Tse-Lac aumentava sua frota com navios estrangeiros, alguns deles eram enormes máquinas de guerras européias.

Mas talvez o menor problema dos Tigres fosse o sanguinário e cruel Chang Tse-Lac. O almirante ouvira falar que os bárbaros das distantes terras do ocidente escravizavam outros povos sem dó. Chegavam como amigos, sob o pretexto de comerciar e então, quando menos se esperava, eles atacavam covardemente. Por causa disso, Zhang Lei seguia com um pé atrás as ordens do Imperador em firmar uma aliança com portugueses. De alguma maneira este pacto devia encher os cofres de Yan Song, porém o almirante não podia imaginar como. Mas de fato era a única explicação plausível para permitir o estabelecimento destes perigosos estrangeiros em terras chinesas.

Perdido em seus pensamentos, Zhang Lei não percebeu a aproximação de um de seus homens.

-Senhor, já estamos chegando.

O almirante deixou de lado todos os problemas de sua nação e levou uma luneta aos olhos. Podia ver um pequeno povoado do outro lado da península, pontinhos insignificantes moviam-se desesperadamente de um lado ao outro. Eles já tinham sido vistos. Para além disso, havia oito embarcações grandes atracadas no cais, todas com bandeiras do reino de Portugal hasteadas. Notou que cinco delas eram maiores, com imponentes castelos nas proas e nas popas. Havia duas linhas de canhão no deque, Zhang Lei imaginou o quão destrutivos seriam estes navios em uma batalha. Estremeceu frente a idéia de ter de enfrentá-los com os pequenos juncos que a marinha imperial empregava atualmente.

-Preparem um barco para mim. Vou até lá para mostrar que não queremos confusão.

O homem, que permanecera em pé rigidamente por um longo período de tempo, esperando as ordens enquanto o oficial observava o entreposto comercial dos bárbaros, fez uma rápida reverência a Zhang Lei e desapareceu em meio às dezenas de soldados que povoavam o convés.

Zhang Lei engoliu em seco. A tensão crescia ainda mais à medida que se aproximavam dos portugueses. Caso tivessem algum resquício de civilização, receberiam o almirante chinês com cortesia e ouviriam tudo que ele tinha para falar. Caso contrário, ele teria uma morte sem honra. Algo lhe dizia que tudo daria errado, mas que outra opção havia para evitar um combate?

Primeiras Palavras

O primeiro conto que publicarei aqui será chamado "Os Corsários de Macau". Ambientado no século XVI, contará sobre o início deste povoado português no extremo oriente. Escolhi este tema porque sempre me interessei por choques entre culturas diferentes, além do que é um momento pouco documentado que oferece muitas lacunas para a imaginação. É claro que não fiz uma vasta pesquisa, não sou um historiador ainda. Busquei na internet uma série de artigos e vi que não havia muita informação sobre os primórdios de Macau. Tentei recriar a época com base nas escassas informações que tive acesso. Não vou me alongar sobre esta questão, ao final do conto adicionarei uma nota sobre minha pequena pesquisa, tentando confrontar os fatos que encontrei com os que escrevi.

Por agora basta dizer que a história corre em torno de três figuras principais: Zhang Lei (um almirante da marinha chinesa), Chang Tse-Lac (um terrível e célebre pirata chinês) e João Magalhães da Costa (um mercador/aventureiro português). Apenas Chang Tse-Lac pode ter sido real. Digo "pode", porque encontrei em alguns lugares que na verdade a história dos piratas de Macau era apenas uma anedota que refletia a incapacidade dos chineses em manter seus mares livres da ameaça corsária.

Sem mais delongas, vamos ao conto. Espero que gostem.